Quando analisamos a prática pedagógica de qualquer
professor, vemos que, por trás de suas ações, há sempre um conjunto de ideias
que as orienta. Mesmo quando ele não tem consciência dessas ideias, dessas
concepções, dessas teorias, elas estão presentes.
Para compreender a ação do professor é preciso
analisá-la com o objetivo de desvelar os seguintes aspectos:
• qual a concepção
que o professor tem, e que se expressa em seus atos, do conteúdo que ele espera
que o aluno aprenda;
• qual a concepção
que o professor tem, e que se expressa em seus atos, do processo de
aprendizagem, isto é, dos caminhos pelos quais a aprendizagem acontece;
• qual a concepção
que o professor tem, e que se expressa em seus atos, de como deve ser o ensino.
A teoria empirista — que historicamente é a que
mais vem influenciando as representações sobre o que é ensinar, quem é o aluno,
como ele aprende e o que e como se deve ensinar — se expressa em um modelo da
aprendizagem conhecido como de "estímulo-resposta". Esse modelo
define a aprendizagem como "a substituição de respostas erradas por
respostas certas".
A hipótese subjacente a essa concepção é a de que o
aluno precisa memorizar e fixar informações — as mais simples e parciais
possíveis e que devem ir se acumulando com o tempo. O modelo típico de cartilha
está baseado nisso.
As cartilhas trabalham com uma concepção de língua
escrita como transcrição da fala: elas supõem a escrita como espelho da língua
que se fala. Seus "textos" são construídos com a função de tornar
clara (segundo o que elas supõem) essa relação de transcrição. Em geral, são
palavras-chave e
famílias silábicas, usadas exaustivamente — e aí
encontram-se coisas como "o bebê baba na babá", "o boi
bebe", "Didi dá o dado a Dedé". A função do
material escrito numa cartilha é apenas ajudar o aluno a desentranhar a regra
de geração do sistema alfabético: que b com a dá
ba, e por aí afora.Centrada
nessa abordagem que vê a língua como pura fonologia, a cartilha introduz o
aluno nomundo da escrita apresentando-lhe um texto que, na verdade, é apenas um
agregado de frasesdesconectadas. Essa concepção de "texto" para
ensinar a ler está tão internalizada no imaginário
do
professor que, certa vez, uma professora que se esforçava para transformar sua
prática documentou em vídeo uma aula e me enviou, para mostrar como já
conseguia trabalhar sem a cartilha. A atividade era uma produção coletiva de
texto na lousa. O texto produzido pelos alunos e grafado pela professora era o
seguinte:
O sapo
O sapo é bom.
O sapo come inseto.
O sapo é feio.
O sapo vive na água e na terra.
Ele solta um líquido pela espinha.
O sapo é verde.
Como se pode observar, cada enunciado é tratado como se fosse um
parágrafo independente. Exigências mínimas de coesão textual, como não repetir
"o sapo" em cada enunciado, nem sequer são consideradas. Só na quinta
frase aparece, pela primeira vez, um pronome para substituir "o sapo".
E na sexta frase, lá está ele de novo. Seria fácil concluir que a professora é
que não sabe escrever com um mínimo de coerência e coesão. Mas não era esse o
caso. Além de saber escrever, era uma ótima professora: empenhada e
comprometida com seu trabalho e seus alunos. Apenas havia interiorizado em sua
prática o modelo de "texto" que caracteriza a metodologia de
alfabetização expressa nas cartilhas. E de tal maneira que nem sequer tinha
consciência disso: foi preciso tematizar sua prática a partir dessa situação
documentada para que ela pudesse se dar conta.
Como a metodologia de ensino expressa nas cartilhas concebe os caminhos
pelos quais a aprendizagem acontece
Poderíamos dizer, em poucas palavras, que na concepção empirista o
conhecimento está "fora" do sujeito e é internalizado através dos
sentidos, ativados pela ação física e perceptual. O sujeito da aprendizagem
seria "vazio" na sua origem, sendo "preenchido" pelas
experiências que tem com o mundo. Criticando essa ideia de um ensino que se
"deposita" na mente do aluno, Paulo
Freire usava uma metáfora — "educação bancária" — para falar
de uma escola em que se pretende "sacar" exatamente aquilo que se
"depositou" na cabeça do aluno.
Nessa concepção o aprendiz é alguém que vai juntando informações. Ele
aprende o ba, be, bi, bo, bu, depois o ma, me, mi, mo, mu e supõe-se que em
algum momento, ao longo desse processo, tenha uma espécie de "estalo"
e comece a perceber o que é que o ma, o me, o mi, o mo e o um têm em
comum.Acredita-se que ele seja capaz de aprender exatamente o que lhe ensinam e
de ultrapassar um pouco isso, fazendo uma síntese a partir de uma determinada
quantidade de informações. Na verdade, o modelo supõe apenas a acumulação. Os
professores é que, convivendo com alunos reais o tempo todo, acabam encontrando
na figura do "estalo" a resposta para certas ocorrências
aparentemente inexplicáveis. Porque sabem que alguns entendem o sistema logo
que aprendem algumas poucas famílias silábicas, enquanto outros chegam ao Z de
zabumba sem compreendê-lo. E já que não têm como entender essas diferenças,
buscam explicações no que se convencionou chamar de "estalo".
Frequentemente dizem: "O menino deu o estalo" ou
"Ainda não deu o estalo, mas uma hora vai dar".
Para se acomodar a essa teoria, o processo de ensino é caracterizado por
um investimento na cópia, na escrita sob ditado, na memorização pura e simples,
na utilização da memória de curto prazo para reconhecimento das famílias
silábicas quando o professor toma a leitura. Essa forma de trabalhar está
relacionada à crença de que primeiro os meninos têm de aprender a ler e a
escrever dentro do sistema alfabético, fazendo uma leitura mecânica, para
depois adquirir uma leitura compreensiva.
Ou seja, primeiro eles precisariam aprender a fazer barulho com a boca
diante das letras para depois poder aprender a ler de verdade e a produzir
sentido diante de textos escritos.
Assim, os três tipos de concepção a que nos referimos no início deste
capítulo se articulam para produzir a prática do professor que trabalha segundo
a concepção empirista: a língua (conteúdo) é vista como transcrição da fala, a
aprendizagem se dá pelo acúmulo de informações e o ensino deve investir na
memorização. Na verdade, qualquer prática pedagógica, qualquer que seja o
conteúdo, em qualquer área, pode ser analisada a partir deste trio:
conteúdo, aprendizagem e ensino.
Para mudar é preciso reconstruir toda a prática a partir de um novo
paradigma teórico
Quando se tenta sair de um modelo de aprendizagem empirista para um
modelo construtivista, as dificuldades de entendimento às vezes são graves. De
uma perspectiva construtivista, o conhecimento não é concebido como uma cópia
do real, incorporado diretamente pelo sujeito: pressupõe uma atividade, por
parte de quem aprende, que organiza e integra os novos conhecimentos aos já
existentes. Isso vale tanto para o aluno quanto para o professor em processo de
transformação.
Se o professor procura inovar sua prática, adotando um modelo de ensino
que pressupõe a construção de conhecimento sem compreender suficientemente as
questões que lhe dão sustentação, corre o risco, grave no meu modo de ver, de
ficar se deslocando de um modelo que lhe é familiar para o outro, meio
desconhecido, sem muito domínio de sua própria prática —"mesclando",
como se costuma dizer.
O equívoco mais comum é pensar que alguns conteúdos se constroem e
outros não. O que, nessa visão "mesclada", vale dizer que uns
precisariam ser ensinados e outros, não. Em outros casos o modelo empirista
fica intocado e as ideias que as crianças constroem em seu processo de
aprendizagem são distorcidas a ponto de o professor vê-las como conteúdo a ser
ensinado.
Um exemplo disso são os professores que, encantados com o que a
psicogênese da língua escrita desvendou sobre o que pensam as crianças quando
se alfabetizam, passaram a ensinar seus alunos a escrever silabicamente. Que
raciocínio leva a uma distorção desse tipo? Se os alunos
têm de passar por uma escrita silábica para chegar a uma escrita
alfabética, ensiná-los a escrever silabicamente faria chegar mais rápido à
escrita alfabética, pensam esses professores. Essa perspectiva só pode caber
num modelo empirista de ensino, cuja lógica intrínseca é a de organizar modelo
construtivista. Outro tipo de entendimento distorcido, mais influenciado por
práticas espontaneístas, é o seguinte:
diante da informação de que quem constrói o conhecimento é o sujeito,
houve professores que entenderam que a intervenção pedagógica seria, então,
desnecessária. Se é o aluno quem vai construir o conhecimento, o que os
professores teriam a fazer dentro da sala de aula? E passaram a não fazer nada.
Como se vê, é fácil nos perdermos em nossa prática educativa quando não nos damos
conta do que orienta de fato nossas ações.Ou melhor, de quais são as nossas
teorias em ação.
Conteúdos escolares são objetos de conhecimento complexos, que devem ser
dados a conhecer, aos alunos, por inteiro
A mudança na concepção dos conteúdos oferecidos pela escola provoca, de
imediato, uma transformação enorme na oferta de informação aos alunos.Vamos
continuar com o exemplo da língua escrita para tornar mais claro o que queremos
dizer. Se o professor parte do princípio de que a língua escrita é complexa,
dentro de uma concepção construtivista da aprendizagem ela
deve ser — mesmo assim e por isso mesmo — oferecida inteira para os
alunos. E de formafuncional, isto é, tal como é usada realmente. Quando alguém
aprende a escrever, está aprendendo ao mesmo tempo muitos outros conteúdos além
do bê-á-bá, do sistema de escrita alfabética —por exemplo, as características
discursivas da língua, ou seja, a forma que ela assume em diferentes gêneros
através dos quais se realiza socialmente.
Pensando assim caberá ao professor criar situações que permitam aos
alunos vivenciar os usos sociais que se faz da escrita, as características dos
diferentes gêneros textuais, a linguagem adequada a diferentes contextos
comunicativos, além do sistema pelo qual a língua é grafada, o sistema
alfabético. Para alguém ser capaz de ler com autonomia é preciso compreender o sistema
alfabético, mas isso apenas lhe confere autonomia. Qualquer um pode aprender
muito sobre a língua escrita mesmo sem poder ler e escrever autonomamente. Isso
depende da oportunidades de ouvir a leitura de textos, participar de situações
sociais nas quais os textos reais são utilizados, pensar sobre os usos, as
características e o funcionamento da língua escrita.Para os construtivistas —
diferentemente dos empiristas, para quem a informação deveria ser oferecida da
forma mais simples possível, uma de cada vez, para não confundir aquele que
aprende — o aprendiz é um sujeito, protagonista do seu próprio processo de
aprendizagem, alguém que vai produzir a transformação que converte informação
em conhecimento próprio. Essa construção, pelo aprendiz, não se dá por si mesma
e no vazio, mas a partir de situações nas quais ele possa agir sobre o que é
objeto de seu conhecimento, pensar sobre ele, recebendo ajuda, sendo desafiado
a refletir, interagindo com outras pessoas. Quando se acredita que o motor da
aprendizagem é o esforço do sujeito para dar sentido à informação que está
disponível, tem-se uma situação bastante diferente daquela em que o aprendiz
teria de permanecer tranquilo e com os sentidos abertos para introjetar a
informação que lhe é oferecida, da maneira como é oferecida. Num modelo
empirista a informação é
introjetada,
ou não. Num modelo construtivista, o aprendiz tem de transformar a informação
para poder assimilá-la. Concepções tão diferentes dão origem, necessariamente,
a práticas etapas de apresentação do conhecimento aos alunos.
Afirmar que o conhecimento prévio é base da aprendizagem não é defender
pré-requisitos
Para aprender alguma coisa, é preciso já saber alguma coisa — diz o
modelo construtivista. Ninguém conseguirá aprender alguma coisa se não tiver
como reconhecer aquilo como algo apreensível. O conhecimento não é gerado do
nada, é uma permanente transformação a partir do conhecimento que já existe.
Essa afirmação — a de que o conhecimento prévio do aprendiz é base de novas
aprendizagens — não significa a crença ou defesa de pré-requisitos.Tampouco
esse tipo de conhecimento se confunde com a matéria ensinada anteriormente pelo
professor.
Se, por um lado, é o que cada um já possui de conhecimento que explica
as diferentes formas em tempos de aprendizagem de determinados conteúdos que
estão sendo tratados, por outro sabemos que a intervenção do professor é
determinante neste processo. Seja nas propostas de atividade, seja na forma
como encoraja cada um de seus alunos a se lançar na ousadia de aprender,
o professor atua o tempo inteiro.
Não informar nem corrigir significa abandonar o aluno à própria sorte
Como já vimos, diante de um corpo de ideias tão novo como a concepção
construtivista da aprendizagem e o modelo de ensino mediante a resolução de
problemas, o professor está também na posição de aprendiz. No entanto, o
conhecimento pedagógico é produzido coletivamente, o que permite aos
professores hoje aprender a partir do que outros já aprenderam e tomar
cuidado com erros já cometidos por outros.
Um erro que precisa ser evitado por suas graves consequências é o desvio
espontaneísta: como é o aluno quem constrói o conhecimento, não seria
necessário ensinar-lhe.A partir dessa crença o professor passa a não informar,
a não corrigir e a se satisfazer com o que o aluno faz "do seu
jeito". Essa visão implica abandonar o aluno à sua própria sorte. E é
muito importante que o
professor compreenda o que significa, do ponto de vista da criança, o
"vou fazer do meu jeito".
Vamos usar a alfabetização novamente para exemplificar. Quando uma
criança entra na escola ainda não alfabetizada, tanto ela quanto o professor
sabem que ela não sabe ler nem escrever.
Ao propor que se arrisque a escrever do jeito que imagina, o que o
professor na verdade está propondo é uma atividade baseada na capacidade
infantil de jogar, de fazer de conta. Num contrato desse tipo — que reza que o
aluno deve escrever pondo em jogo tudo o que sabe e pensa sobre a escrita — o
professor deve usar tudo o que sabe sobre as hipóteses que as crianças
constroem a respeito da escrita para poder, interpretando o que o aluno
escreveu, ajudá-lo a
avançar. Dentro desse contrato, quem "faz de conta" é a
criança. Nesse espaço em que a criança escreve "do seu jeito" o papel
do professor é delicado. Mas é semelhante ao de alguém adulto que participa de
uma brincadeira de faz de conta sem entrar nela. Ao professor cabe organizar a
situação de aprendizagem de forma a oferecer informação adequada. Sua função é
observar a ação das crianças, acolher ou problematizar suas produções,
intervindo sempre que achar que pode fazer a reflexão dos alunos sobre a
escrita avançar. O professor funciona então como uma espécie de diretor de cena
ou de contrarregra e cabe a ele montar o andaime para apoiar a
construção do aprendiz.
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